domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Campo das Estrelas

por Kitsin Heiden


Numa noite daquelas que dizem ser de verão encontrei-me com ela pela última vez. Tudo começou no jardim que eu acabara de descobrir nos fundos da minha casa. Entre uma e outra parede coberta de ervas, meus olhos viram uma figura pálida, que caminhava, e ela me pareceu ter aquela feição de uma pessoa quando pensa. Não percebi logo que se tratava de uma bela moça, por algum tempo ela ainda me pareceu como uma espécie de coisa fora deste mundo, talvez uma fada ou outra criatura fantástica. Quando entrou atrás de um pinheiro eu parei de vê-la. Então, como num impulso, eu a segui. Um pouco adiante deparei-me com uma estátua de mármore, mármore branco aceso pela luz da lua. Era a figura de um homem, alto e de olhos vazados. Sustentava no ombro um pote que, de dentro, liberava um fluido como se fosse água. Olhei à volta e nada mais vi além de incontáveis paredes de ervas. Quando tornei o rosto para a estátua, já me pareceu mais claro que seu semblante tinha uma expressão grave, como se sentisse dor, talvez pelo peso do tal pote. Pensei estupidamente que pudesse ajudar de alguma forma, cheguei, por segundos, a cogitar a idéia de remover do seu ombro aquele peso mas me dei conta, logo em seguida, que seria em vão. Para abandonar aquela idéia, virei-me de repente e caminhei em direção a uma das passagens entre as paredes de ervas. Parei a tempo de ver a ponta de um vestido branco que esvoaçava para trás de um pilar muito largo e alto. Disparei até lá e ele mesmo ajudou a cessar o meu próprio ritmo. Abracei-o e parei. A estranha moça já havia sumido novamente e a única coisa que eu quis fazer naquele instante foi olhar para cima, para o fim do pilar. Lá não se mostrava coisa alguma: normalmente espera-se ver, no fim de uma peça como aquela, um capitel. Mas aquela, no entanto, era só fuste e base. Nem mesmo um daqueles grandes vasos com plantas de folhas miúdas se via ali. Pensei então que talvez uma águia ou até um pássaro migratório pudesse ter vindo e feito um ninho lá em cima e que, dali de baixo, de onde eu estava, não era possível ver. Por isso, explico agora, tive aquele ímpeto de escalar o pilar e o fiz com as minhas próprias forças. Com o uso dos meus braços e pernas, percorri-o lentamente até o seu topo onde pousei meus olhos e minha decepção. Já lá em cima, vendo o quanto estava plenamente vazio de qualquer habitante alado, ou mesmo não, com um pouco mais de esforço, sentei-me e lá fiquei. Pude sentir que a brisa se fazia mais fresca que lá em baixo. Como não havia a quantidade enorme de paredes recobertas de ervas por todos os lados, o vento corria sem impedimentos. A lua também parecia mais brilhante. E a vista de tudo que havia lá em baixo era surpreendente. Lá estava a estátua do homem com o pote d´água e o portão que me levara ao jardim. Mais ao longe pude avistar a minha casa com algumas das luzes acesas. Lá dentro, onde uma das janelas estava entreaberta, vi a figura da minha mãe. Ela estava no interior do meu quarto e, com seus gestos sempre tão zelosos, cuidava das minhas coisa. Pude perceber também o quanto o telhado precisava de novos reparos e como o caminho até a cidade era longo. Vi o varal e as roupas que já haviam secado durante o dia e que agora, por descuido meu, esperavam pelo orvalho da noite para umedece-las outra vez. E vi ainda quando aquela moça passou em seu ritmo contido um pouco mais adiante, ainda dentro do jardim. Pude ver, por mim mesmo, ao longe, que ela se sentou num banco de pedra e até que ajeitou o vestido na barra. Apressei-me, então, para descer do meu posto a tempo de alcançá-la e, no meu afoito, acabei por cair na lama que rodeava a coluna. De nada adiantou proteger meus pés, pensei comigo mesmo, se acabei sujando o resto todo. Fui, então, no que achei ser a direção dela, e de algumas paredes de ervas eu tive que me desviar. Entrei e sai através de alguns arcos nas rochas e até atravessei uma grande ponte sobre um lago que eu não imaginara existir ali. Do outro lado, quando eu esperava já poder vê-la sentada, não havia nada senão o banco de pedra. Ela havia saído a andar outra vez no seu trajeto errante mas deixara para mim a rápida visão do seu corpo dobrando a esquina de um canteiro com orquídeas. Fui, então, naquela direção mas o cansaço me tomou e eu desabei sobre o banco de pedra. Enquanto recobrava o fôlego a vista dali me chamou à atenção. Pude ver que o lago era bem menor do que me havia parecido de primeira e que a ponte não era tão extensa assim. Percebi que alguns barcos com remadores fortes e animados passavam por debaixo dela e, pela agitação, devia ser uma espécie de torneio. Perto dali, um farol velho não indicava mais direção alguma com sua luz pois ela não existia mais. A lua estava alta e clara, prateava tudo naquele lugar, inclusive o uniforme branco dos competidores. A certo momento, um dos barcos ultrapassou o que eles chamariam de linha de chegada e houve uma grande gritaria. Tão grande que um grupo de pássaros, que se escondia na copa de uma árvore mais perto de mim, saiu em revoada. Por que os acompanhava com os olhos, pude perceber que o céu não tinha estrelas. Estava muito cinzento, cinzento como costuma estar nas noites de lua. Foi a primeira vez naquela noite que reparei no céu, tão grande, vasto e tão discreto ao mesmo tempo. Voltei, então, a observar os competidores mas já não estavam mais. No seu lugar, no entanto, havia o vulto de uma mulher bem mais velha que a moça que eu perseguia. Ela descia com as mãos no rosto em direção ao fundo do lago. Não demorou muito tempo e ela havia desaparecido nas águas negras sem provocar nenhum ondejamento. Eu não sabia de onde ela havia vindo e por que procurou tão triste fim. Aquilo me pareceu assustador, assim como parecem ser as coisas que nos chegam sem respostas e nos trazem temores. Quem seria ela? Porque havia feito aquilo? Eu não pude impedir, agora digo. Mas é estranho que embora eu saiba que deveria ter corrido em seu auxílio não o fiz e não me senti mal por isso. Porquê? Tentei então imaginar onde a moça que eu perseguia podia estar agora. Teria ela algo a me dizer? Caminhei a esmo até que, por fim, encontrei o portão de saída. Parei diante dele, olhei à volta e vi o que me pareceu serem senhoras ao redor de uma espineta. Uma delas, a que tinha os cabelos soltos, tocava o instrumento com habilidade. Havia mais três que conversavam entre si e riam de vez em quando ao ser dito algo engraçado. Aproximei-me delas e toquei no braço da que, naquele momento, jogava a cabeça para trás numa gargalhada sincera. Ela olhou-me e inclinou um pouco a cabeça fazendo uma expressão que parecia a de alguém em dúvida. Antes que eu pudesse perguntar algo, ela mesma me perguntou de onde eu viera. Lhe disse que era o dono do jardim, visto que ele ficava nos fundos da minha casa. Ela ressaltou que nunca me havia visto antes por ali. Eu respondi que era verdade pois havia pouco tempo que eu descobrira aquele lugar. Antes que ela mesma fizesse outra pergunta qualquer, ou ainda começasse a contar algum caso, daqueles que as pessoas que já viveram muito sempre gostam de contar, eu perguntei-lhe se havia visto uma moça jovem e de pele muito pálida passar por elas. Ela me disse que sim, na verdade apontou na direção do portão de saída, e falou que ela havia passado para o outro lado. Eu agradeci e deixei-as com sua diversão. Abri o portão, que era de madeira muito pesada com incrustações de ferro, e saí. Do outro lado, no entanto, não havia o que eu esperava ver no que se refere ao lado de fora de um jardim. Eu estava, no que me pareceu logo de início e que pouquíssimo tempo depois vim a comprovar, no começo do jardim do qual eu tinha acabado de sair. O portão que eu atravessara como sendo o de saída, na verdade, era o mesmo da entrada. Pus-me a caminhar novamente a esmo. Não tinha mais, àquela altura, idéia de que percurso fazer. O lugar me era familiar, na verdade o mesmo de antes. Mas eu agora não obedecia mais a nenhuma direção visto que a misteriosa moça desaparecera, exatamente como das outras vezes. De qualquer maneira eu tinha que esperar para vê-la novamente, para seguí-la e, enfim, ter para onde ir. Olhando à volta lá estavam as paredes recobertas de ervas e aquela grama toda. A lua ainda no céu, sem nuvens de qualquer tipo e sem estrelas também, justamente como havia sido antes. Por algum tempo eu caminhei com o olhar fixo no céu, fiquei um pouco tonto até, e foi ai que mais à frente me apareceu, como do nada, aquele vulto branco e andarilho. Era a moça que eu procurava. Agora ela estava um pouco diferente de antes, eu pude perceber por mim mesmo. Não tinha mais o semblante de alguém que pensa mas sim, o que se tem quando se acabou de ver algo muito bonito e se está no meio do caminho para contar a alguém o que se viu. Talvez por isso ela tivesse um passo mais veloz. A fim de não perdê-la de vista novamente, apressei-me e fui atrás de sua imagem. Mas como num passe de mágica ela não estava mais lá, lá no lugar onde presumidamente deveria estar após dobrar atrás de uma seqüência de arbustos altos. Freiei-me e deixei cair os ombros. À minha frente, pude ver, só havia campo vasto, poucas árvores e alguns gansos sonolentos andando numa mesma direção. O lugar em que eu estava era uma colina um pouco mais alta em relação ao campo onde estavam os gansos. O lugar era cercado por pinheiros imponentes e de copas bem desenhadas. Estavam alinhados como quando alguém que planta algumas coisas tem a preocupação de arrumá-las numa ordem precisa. Mais ao longe, pude ver claramente um lago prateado pela luz da lua. Um lago com uma ponte, um farol que ainda estava aceso e barquinhos. Pensei comigo mesmo que deveriam ser os mesmos barcos que eu havia visto antes. E, então, fui na direção deles, correndo com o impulso da colina que descendia. Os gansos saíram de seu andar sonolento quando eu passei por eles, agitaram suas asas enormes e foram parar no outro lado do campo, já perto dos pinheiros. Quando cheguei ao lago vi a ponte e os competidores e vi a minha moça do outro lado, sentada num banco de pedra ajeitando o vestido na barra. Fiquei feliz de reencontrá-la e apressei-me em direção à ponte. Por que parei na sua entrada, pois me pareceu menos longa desta vez, olhei novamente na direção do banco de pedra, acho que com a intenção de confirmar se a moça ainda estava lá, e então vi uma mulher mais velha sentar-se ao seu lado. A moça sorriu, afastou cuidadosamente os cabelos da mulher que lhe impediam a visão da orelha e, então, sussurrou algo. Imediatamente fiquei surpreso pois, num gesto que as pessoas tem quando se assustam muito com algo que se lhes foi dito, ela tapou o rosto com as duas mãos e deixou cair a cabeça. Imediatamente após isso, o farol me chamou à atenção, pois apagou-se. Também a moça levantou-se e foi para trás de um canteiro de orquídeas. A mulher com as mãos no rosto, levantou-se igualmente mas foi em outra direção, com passos que me pareceram rápidos, e desapareceu nas sombras de uma parede de ervas. Eu ainda estava com a expressão e o sentimento de quem está meio surpreso e meio confuso, quando houve um grito de satisfação vindo do lago. Pude perceber, por mim mesmo, que eu saí bruscamente de algo que algumas pessoas chamariam de transe e quando olhei em direção à água, a competição havia acabado e um grupo de remadores comemorava animadamente. Lá ao longe, na outra margem, um grupo de pássaros desaparecia em revoada por detrás do arvoredo escurecido pelo contraste com o céu cinza. Do meio da ponte pude ver, por mim mesmo, que o lago voltara a se esvaziar de competidores e parei meu trajeto ao ver, também por mim mesmo, que a mulher que havia se enfurnado nas sombras de uma das paredes com ervas reaparecera e estava, ainda com as mãos cobrindo o rosto, entrando nas águas e caminhando para o fundo sem o que se poderia chamar de receio. Caminhou e desapareceu de vez. Por alguns instantes eu fiquei na situação que algumas pessoas ficam quando não sabem o que fazer. Olhei um pouco à volta e só vi paisagem e mais nada. Então decidi que eu deveria atravessar o resto da ponte, que agora já não me parecia tão longa quanto antes, e procurar a moça que eu perseguia. E foi isso mesmo que eu fiz. Tomei um novo caminho, desta vez eu apostava que poderia encontrá-la a tempo. Por isso corri depressa para o portão que as senhoras com a espineta chamaram de portão de saída, e o fiz sem erro. Mas no caminho, que era outro diferente daquele que eu mesmo fizera antes, encontrei uma pilha alta de livros, livros que a princípio me pareceram familiares. Foi por isso, e só por isso, que parei e aproximei-me deles. Eram, se daquela maneira se podia contar alguma coisa e se ter certeza do resultado, quase quinhentos e faziam uma só pilha que se equilibrava de maneira espetacular. Pude observar com meus olhos que seus títulos haviam sido apagados das laterais e, como estavam numa pilha muito instável, não poderia retirar um deles, mesmo um só que fosse, para ver seus conteúdos, sem que todo o resto caísse sobre mim. Mas pelas capas e suas cores, pelas grossuras de seus volumes e o tom amarelado em que estavam os amontoados de páginas, eu quase tive a sensação da certeza de que eram meus, e que haviam sido removido da minha estante por alguém que, não só os empilhara ali naquele lugar mas que também lhes havia removido o pó. Aquilo não era nenhuma certeza para mim, mas embora eu precisasse tê-la, não podia esperar por ela naquele momento. Eu deixei os livros para trás e saí a passos largos em direção ao portão que diziam ser o de saída. Não demorei muito a chegar lá e estava entreaberto. As senhoras que encontrei antes já haviam ido mas não haviam levado a espineta que me pareceu mais velha do que antes. Faltavam algumas teclas, e umas cordas, pude ver, estavam rebentadas. Não me demorei muito e saí pelo portão fechando-o atrás de mim. Novamente eu estava lá, no começo de tudo, com a mesma paisagem e com a mesma lua no mesmo céu sem estrelas. Ao contrário das outras vezes não esperei parado para ver passar aquela moça que eu perseguia. Eu me adiantei na direção do lago. Tinha feito, na minha cabeça, o que alguns chamariam de um plano. Eu me perguntava sem parar o que a moça havia dito de tão grave ao pé do ouvido daquela mulher, tão grave que pudesse fazê-la, de uma maneira tão lamentável, levar as duas mãos à face e afundar-se nas águas. Correndo mais que a moça, chegando antes dela do outro lado da ponte, e esperando atrás do banco de pedra, eu poderia, por mim mesmo, escutar o tal segredo. Tudo aquilo havia sido elaborado dentro de meu pensamento a fim de acabar com o mistério que me seguia desde que começara a passear por aquele jardim. Se eu perseguia alguém por ali alguém também me perseguia, eu sabia. Talvez, na verdade, fosse eu o grande perseguido da noite, e não a moça. E foi assim por mais aquela vez. Novamente já estava eu, com o uso das minhas próprias pernas, atravessando a ponte. Os tais remadores não se faziam avistar ainda, embora um som distante de vozes humanas se pudesse escutar. O banco de pedra estava lá, vazio e frio, frio como são os bancos de pedra. Por fim, eu estava na outra margem do lago e os remadores já se podiam ver. Vinham em velocidade naquela direção e suas vozes eram altas e diziam coisas que eu não podia entender mas que eram como ordens de uma guerra. E seus sons aumentavam muito de volume assim que se aproximavam da ponte. E seus uniformes brancos estavam acesos pela luz da lua. Também ainda estava acesso o farol, que por ser muito velho, eu tinha a certeza, e também por que já havia visto antes, se apagaria num determinado momento. O vento era como uma brisa, brisa fria mas calma, assim como devem ser as brisas. Subi a colina e sentei-me atrás do banco. Lá no meio da ponte, eu já podia ver, vinha passando a moça tão alva como o algodão, e suas roupas e pele mais acesas pela lua do que os uniformes brancos dos remadores. Ela não vinha muito rápido nem posso dizer que estivesse devagar. Veio no ritmo exato para sentar-se no banco a tempo de assistir alguns barcos passarem por debaixo da ponte que era inacreditavelmente pequena para que aquilo pudesse ser feito ali. Sentou-se e ajeitou o vestido na barra. Enquanto eu tentava ver, pela primeira vez de perto, o rosto da moça que acabara de se sentar de costas para mim, não percebi que a mulher aproximou-se e sentou-se ao lado dela. Os remadores já começavam a comemorar alguma coisa e suas vozes se faziam tão altas e claras que pareceu-me, a mim mesmo, que alguns deles estivessem mesmo do meu lado, falando e gritando coisas eufóricas. A moça então como se era de esperar, afastou delicadamente os cabelos que estorvavam a orelha direita da mulher que olhava fixamente o lago, e finalmente lhe disse... Lhe disse algo certamente, algo que para mim misturou-se ao som vindo da euforia dos competidores! Imediatamente, enquanto ainda estava com o sentimento com o qual ficam as pessoas quando estão decepcionadas, vi quando a mulher levou as mãos ao rosto e o encobriu para o resto dos seus minutos. Vi também que o farol, por ser velho, apagou-se por si só. E também vi que a moça não demorou a levantar-se do banco de pedra e a dirigir-se em direção ao seu destino já esperado. Por fim, a mulher também levantou-se e correu, no que me pareceu, para enfiar-se atrás da parede de ervas. Eu olhava na sua direção, não mais escondido atrás do banco de pedra, mas de pé, quando um grito de euforia veio do lago e espantou os pássaros na árvore atrás de mim. Como faria eu para escutar aquela frase tão curta e tão difícil ao mesmo tempo? Como poderia fazer? Eu perguntei a mim mesmo tantas vezes que pude esperar ali e ver quando a mulher saiu da escuridão e caminhou para o fundo do lago. Novamente corri, e daquela vez eu queria que fosse a última, e não havia tempo para parar e observar as coisas à minha volta. Nem mesmo parei para comprovar se aqueles livros eram mesmo os meus que haviam saído da estante, mesmo vendo que a pilha havia sido desfeita e que os volumes estavam abertos espalhados pelo chão. Também não parei para conversar com quatro meninas que brincavam com a espineta na saída do jardim. Nem mesmo por que uma delas, pude escutar muito bem e com clareza impressionante, apensar da velocidade que eu desenvolvia, me pediu que lhe ensinasse a tocar o tal instrumento que era, como alguns diriam, reluzente de tão novo. Meus passos eram certamente o que chamariam de alucinados pois deles eu dependia para chegar muito antes de que tudo acontecesse. E ainda vi, embora corresse tanto, que a estátua do homem permanecia lá, mas que seu pote, que derramava algo que seria a representação de um fluido, estava mesmo no chão, partido. Mas pude ver ainda, com detalhes impressionantes, que seu rosto continuava tão sôfrego como havia sempre estado. Por saber que havia uma coluna muito alta por ali, fui em sua direção e a escalei com as minhas próprias forças. Do seu alto, lá estando eu, ainda por cima de pé, pude ver o banco de pedra, ainda vazio, e o lago, ainda calmo. Mas por que estava num dos pontos mais altos do jardim, pude avistar, numa das curvas do lago, do lado mais oriental, que um agrupamento de homens de uniformes brancos começava uma competição. Saindo da minha posição esticada, que havia sido para que eu pudesse enxergar mais longe, baixei-me a ponto de descer a coluna. Mas foi ai que uma imagem no canto do meu próprio olho esquerdo me fez parar e ver com atenção. Era novamente a visão da minha casa, que tinha algumas luzes acesas e uma ou outra telha partida. E dela, pude ver, uma mulher sair pela porta em direção à entrada do jardim. Era a minha mãe que esquecera de apagar as luzes e carregava um imenso volume nas mãos. Volume aquele tão grande que me pareceu improvável que ela, que eu conhecia tão bem, pudesse carregar daquela forma. Quando sua imagem sumiu por detrás das primeiras paredes de ervas, após a entrada do jardim, eu continuei a descer a coluna de mármore branco e, ao tocar o chão, que agora não era mais lama, corri para a direção mais oriental do lago. Quando lá cheguei, e não me sentia tão cansado como se sentiria alguém que houvesse feito tamanho trajeto em disparada, pude, com tempo, pedir aos competidores que não começassem a prova até que a luz do farol se apagasse. Um deles, muito solícito, me estendeu a mão e concordou dando uma ordem sonora aos demais que a acataram muito bem e sentaram-se à margem, após largarem seus remos, e puseram-se a falar de coisas que remadores falam. Retomei o caminho de volta e corri tanto que pude ver, a tempo, que a moça atravessou a ponte em direção ao banco. Nele ela sentou-se e ajeitou o vestido na barra. E eu estava já na entrada da ponte, que me pareceu ainda menor desta vez, e com dois passos somente consegui transpô-la. E pude ver com meus olhos que a mulher ia na direção do banco de pedra, e pude ver, também, que os remadores haviam mantido o combinado e não estavam vindo e, por isso, não se faziam escutar. Eu ainda corria colina acima quando olhei novamente para a mulher que ia em direção ao banco de pedra e eu só a via de costas. Quando ela se sentou e fixou o lago, seu rosto me surpreendeu pois era o de minha mãe e meu coração se encheu daquilo que uma pessoa chamaria de tristeza pois eu já conhecia o dali pra frente. E vi, já quase perto, que a moça virou-se para ela lentamente e que, com delicadeza, afastou os cabelos que encobriam a orelha da mulher, que agora passara a ser minha mãe. E eu pude, por que corri muito, chegar a tempo de, naquele silêncio, escutar claramente o sussurro da moça que falou e disse, seu filho está morto. Imediatamente meu corpo, ele mesmo, se preencheu de um arrepio muito forte e tudo à minha volta me pareceu girar e eu pude ver ao mesmo tempo, e garanto que o foi, a minha mãe elevar as mãos ao rosto e o farol apagar sua luz. E vi a ponte, o lago, e vi os remadores entrando em suas canoas e arrumando-se para a partida. E vi também minha casa lá embaixo e o caminho para a cidade, e vi o pilar e a moça correndo para o portão de saída. Vi tudo ao mesmo tempo.